
Eu sei que a escravidão africana foi uma das páginas mais tristes da história, se não a mais triste. Essa condicional é porque o ser humana tem uma imaginação tão fertil para cometer iniqüidades, que nunca se sabe o que de mais triste a humanidade cometeu.
No Brasil então, onde se considerava o negro uma mercadoria valiosa mas substituível, o escravo tinha que trabalhar até a completa exaustão, com poucas horas de sono, trabalho braçal muitas vezes brutal, sem liberdade de falar o próprio idioma (pois se tentava distribuir as várias etnias negras de forma a se impedir a formação de grupos capazes de se rebelar), tendo o seu próprio corpo violado constantemente (tanto sexualmente quanto por castigos físicos brutais), tendo seus sentimentos mais humanos desrespeitados (seu uso como reprodutor, a separação de seus membros queridos, a venda de seus filhos e mulheres e maridos, para citar apenas alguns) e tendo, devido a todas essas violações de seu ser, sua própria vida encurtada, resistindo a tudo isso por não mais do que poucos anos, quando vinha a falecer sempre prematuramente.
Sua miséria começava já na África, quando eram batizados em pé (como se dizia), manietados, marcados a ferro, amarrados em grupos e mal tratados, em um processo pouco sutil de perda da identidade pessoal e cultural e da sua própria condição de ser humano.
Já é como mercadoria que é embarcado nos navios negreiros a caminho no Novo Mundo. A embarcação era dividida em vários passadiços de não mais de um metro de altura aonde a "carga" não podia se sentar nem se mexer, devido a correntes que eram fixas no piso e colocadas muito próximas umas das outras. A "mercadoria" era colocada e presa de forma a acomodar o maior número de "peças" possível. Esses "bens semoventes" atravessavam o oceano, vomitando e defecando no lugar onde eram colocados, tão próximos de seus vizinhos, que não tinham nem como escapar dos dejetos desses. Homens e mulheres eram colocados juntos. O cheiro era algo insuportável em compartimentos apertados sem nenhuma ventilação ou luz. Além do forte barulho das ondas no casco da embarcação os únicos sons que se ouviam eram os gemidos, os gritos de pessoas perdendo a razão e o choro desesperado de todos.
Se por acaso o navio, sempre com excesso de "carga" enfrentava uma tempestade ou o risco de afundamento devido às más condições de seus cascos ou, mais tarde, era pego por algum navio da Armada Britânica a solução era muito simples: jogava-se parte da "carga" pela amurada. Essa foi a forma como um grande número dos escravos trazidos da África encontraram sua morte, afogados no oceano.
Todo navio negreiro chegava ao seu destino tendo perdido mais de metade de sua preciosa "carga". Mas os lucros eram tão grandes que as perdas não eram nem sentidas pelos investidores que financiavam a empreitada. Tão grande que foi com esse lucro que se financiou a Revolução Industrial na Inglaterra, para se dar apenas um exemplo. A Inglaterra depois de todo o dinheiro que havia ganho com o tráfico e de ter implantado suas indústrias com esse dinheiro, precisava de trabalhadores remunerados para consumir seus produtos. Por uma simple razão econômica e não uma razão humanitória, proibiu o tráfico de escravos. Os navios que fossem apreendidos com carga humana tinham sua carga apropriada e vendida nas colônias britânicas. Libertar-se os escravos nem pensar.
Depois da travessia, os sobreviventes tinham que ser mantidos em algum entreposto para que se recuperassem da viagem e assim, conseguissem um maior preço nos leilões de escravos.
Uma vez examinados pelos compradores, nús, tento os dentes e orgãos reprodutivos examinados da mesma forma que se examinavam qualquer outro lote de animais, começava o leilão. Um negro com canela fina era bom trabalhador. Uma negra mais bonita era boa para servir na casa. Um negro de grande beleza e força física era comprado para reproduzir. As escravas bonitas também eram compradas para que seus donos na cidade usassem seus corpos para conseguir um bom retorno de capital. Muitas pessoas de boas famílias, homens e mulheres, usavam suas escravas dessa maneira, sem que com isso fossem julgados como cafetões ou seres imorais.
Nas fazendas, os escravos representavam a maior parte do capital investido. As terras ou eram ganhas ou apenas ocupadas. E mesmo quando compradas o eram por valores muito baixos pois havia excesso de terras e falta de fazendeiros.
Se por acaso a propriedade tinha um monjolo, esse era feito na própria fazenda pelos escravos.
Mesmo em condições inumanas e com pouquíssimas condições de se ter, guardar e juntar qualquer coisa de valor, aos poucos uma parte considerável da população escrava vai conseguindo comprar sua alforria. Uma quantidade muito menor recebe a alforria no caso de morte do dono, ou reconhecimento de uma vida de trabalho. Na verdadeuma forma de ser ver livre de despesas. O pior que podia acontecer era um escravo doméstico ficar velho, quando geralmente era jogado nas ruas para que o senhor não tivesse que sustentar alguém que não era mais produtivo. Tinha então essa pessoa, que nunca tinha aprendido a se manter sozinho, que subsistir com esmolas, pequenos furtos ou morrer de fome. Os que adoeciam tinham muitas vezes o mesmo destino e iam morrer nas ruas.
Para comprar suas alforrias os escravos se uniam em famílias, com as mães sendo alforriadas em primeiro lugar, para fazer com que os filhos que fossem nascer, nascessem livres e não escravo. Depois as filhas. Depois os filhos mais moços que poderiam conseguiar mais dinheiro para o núcleo familiar. O homem adulto era sempre o último. Dai o fato de muitos dos lares de negros livres serem emcabeçados por uma matriarca. O escravo adulto se tivesse sorte, quando eram jogados velhos nas ruas poderiam ir para o lar que tinha dedicado sua vida para conseguir.
Essa população negra livre preenchia junto com um grande número de mulatos, a lacuna que existia na sociedade brasileira da época, aonde o branco, fidalgo por nascimento ou por presunção, não fazia nenhum trabalho braçal ou manual. Eram eles os artesãos, os marcineiros, padeiros, açogueiros, sapateiros, ferreiros, alfaiates e costureiras, doceiras, parteiras e todas as profissões urbanas.
Eu concordo plenamente com o movimento que se recusa a comemorar o 13 de maio com o Dia da Libertação dos escravos, um gesto de grande magnanimidade da Princesa Redentora.
Essa lei resultou na verdade de uma briga pelo poder entre os senhores brancos. Enquanto os cafeicultores do Vale do Paraiba, os barões do Império e Usineiros tinham sua fortuna baseada em grande parte pela propriedade de escravos, os novos cafeicultores da Província de São Paulo, em sua grande maioria republicanos, já tinham se definido pela imigração de camponeses europeus. Que melhor forma de quebrar a egemonia dos escravocratas do que lhes tirar os bens e transformar suas fazendas em terras improdutivas? Com esse gesto, os republicanos, que eram a oposição ao governo, conseguiram duas coisas. Ao mesmo tempo que derrubavam o governo e tomavam o poder, eliminavam muitos concorrentes na produção do principal produto brasileiro da época, o café.
Quanto aos escravos, foram jogados no desemprego, sem ter aonde viver, sem terras boas para cultivar. Aos escravos faltavam as condições mínimas de subsistência. Não possuiam e não tinham como adquirir sementes, arados, animais ou terras para plantar que fosse uma roça de subsistência, foram obrigados a morar em pedaços de terra que ainda não tinham senhores definidos, ou estavam largadas por suas más condições, na periferia das fazendas, nos morros das cidades, nas várzeas dos rios. E nas cidades aonde até hoje grande número de seus descendentes ainda moram nesses mesmos lugares, ou lugares ainda piores e vão sendo expulsos tão logo o terreno que ocupavam vão adquirindo algum valor no mercado imobiliário, o que já havia acontecido nas áreas rurais. É nesses terrenos desprezados que passam a morar em condições precárias, à mercê de todo o tipo de desastres naturais, sem proteção e sem qualquer tipo de urbanização.
Já os negros e mulatos livres, foram sendo devolvidos àquela massa humana da qual com tanto esforço e sacrificio haviam conseguido se destacar. Substituídos por artesões europeus, tidos como melhores, perdem todos os seus empregos e ofícios. Sapateiro, alfaiates, costureiras, vendores ambulantes de comidas e doces, vão todos sendo empurrados ao desemprego e à despersonalização da massa miserável. Começou-se a exigir "boa aparência" de empregados domésticos, de vendedores, de bedéis. "Boa aparência" sendo sabido que é na grande maioria das vezes, a necessidade de se apresentar uma pele mais clara, quanto mais branca melhor. Mesmo na prostituição a pessoa de sangue africano vai sendo empurrada para o fundo da profissão, sendo substituída por européias, polacas, francesas nascidas nos mais diversos países europeus. Até entre as categorias sociais mais exploradas os negros vão sendo empurrados para fora da pirâmide social. A discriminação racial no Brasil é cordial, cordial como nossos defensores que na maior guerra que participamos eliminaram 90% da população masculina de qualquer idade da República vizinha do Paraguai. Tudo em nosso país é "cordial" e brutal. Que o digam nossas classes despossuídas.
Prometo me alongar mais nos dois assuntos, ocupação do solo urbano e rural em outros dois textos.
Nota: Os termos entre aspas são termos empregados na época da escravidão.