3/16/2008

Memórias 5 - De velhinhas e cachorros

Quando eu era pequeno e ainda morava na rua Itápolis, eu passeava pelo Pacaembu e por Higienópolis a pé. Era muito agradável passear pelas ruas com casas e jardins cuidados. As calçadas muito arborizadas, bem mantidas e em nível permitiam passeios sem risco.

Como vovó Belita morava na Avenida Angélica, muitos dos passeios a incluiam no trajeto. Quando eu ia comprar cocada na Colméia a Angélica era passagem obrigatória.

Passando a Rua Goiás, subindo a Angélica, tinha umas quatro casinhas geminadas. Uma delas me apavorava, me fazendo mudar de calçada, pois nela moravam cerca de quatro dinamarqueses (como a gente chamava os dog alemães na época) enormes, alguns tigrados, um golden e um preto. A dona deles era uma velhinha muito encurvada, com uma aparência de fragilidade e vestida muito simplesmente. Quando ela saia de casa, sempre levava um dos cachorros pela guia. Ou o cachorro a puxava pela guia, melhor dizendo. Eu apavorado mudava de calçada, sempre achando que o cachorro viria correndo atrás com a velhinha a reboque.

Na rua Bahia, perto do Ofélia, tinha um boxer, que eu chamva de bulldog que latia muito quando eu passava, sempre me assustando, porque distraído observando o mundo, eu esquecia dele. Certa vez uma amiga da minha babá da época foi mordida por ele. A empregada me contou que a mandíbula do cachorro travou e que a amiga ficou minutos com o cachorro preso a seu braço. Verdade ou não, levei anos para peder o medo de boxers.

Para que eu perdesse o medo, mamãe nos comprou um casal de design dogs (viralatas). Eram o duque e a duquesa. Dois cachorrinhos pretos muito calminhos e meigos. Passado algum tempo, a duquesa sumiu e começamos a procurar por toda a casa e pela redondeza. Foi somente à noite que a encontramos. Ela havia entrado na cesta de roupa para passar na lavanderia para dar a luz um minhada com uns quatro ou cinco filhotes. Descobri nesse momento que os bebes saiam da barriga da mãe e que o duque e a duquesa tinha se portado mal. Os cachorrinhos nós demos de presente, com a exeção de um machinho, o Bambi, que ficou conosco muitos anos, chegando a mudar de casa conosco para a rua Atlântica. Um ano mais tarde uma filha da duquesa veio nos visitar e teve uma briga feia com a mães. Até hoje eu me lembro do susto e do choque que eu tive pela falta de memória e amor filial da ingrata. O duque logo após ter se tornado papai faleceu com pneumonia. Me lembro da mamãe cuidando dele, aplicando injeções de antibiótico e do dia que ele morreu. Foi a minha primeira experiência com a morte, a segunda sendo a morte de meu avô Delphino que morava conosco na época do falecimento (mas isso é outra história). Os dois falecidos deixaram viúvas. A duquesa morreu velhinha, anos depois.

Vovô Delphino tinha uma tia, irmã da vovó Ritinha, a tia Tudinha, que morava com três filhas e um filho, todos solteiros. Quando morreu a mais velha, a Augusta, tia Tudinha não levantou mais da cama, vítima de uma profunda depressão. Certa feita vovó eu fomos visitá-la. Tia Tudinha era uma velhinha muito pequenina, deitada entre lençóis de linho rendados, tudo muito limpo e muito branco. Um amor de velhinha. Ela morreu logo em seguida à nossa visita.

Outra visita que vovó e eu fizemos foi à tia Nóca, irmã da vovó Belita e portanto, tia da vovó Aida. Era ao contrário da tia Tudinha, uma mulher gordíssima que não se levantava da berger em que passava o dia todo. Era casada com o tio Paes Leme que era o seu oposto, magrinho. Ela ficava dando ordens e pedindo coisas e lá ia o tio Paes Leme arrantando uma chinelas de feltro quadriculado chec, chec, servir a esposa. Quando tia Nóca morreu foi preciso tirar a janela para passar o caixão, de tão largo que era. Conheci os dois filhos deles. O Cesar eu encontrei uma vez na casa da Angélica mas a Sarita eu via sempre. Quando ficou mais velha a Sarita mudou para Porto Alegre aonde faleceu.

Vovó Belita tinha além das irmãs, dois irmãos homens: tio Ernesto que era o dono do que hoje chamamos de Casa das Rosas e tio Mario. Os irmãos visitavam vovó constantemente. Era sempre um acontecimento, com todo um protocolo, parecia a realeza se visitando, com os irmãos e cunhado (vovô Ataliba) se tratando com toda a cerimônia. Me lembro mais de tio Ernesto, homem de mais de 90 anos, muito branco, com os cabelos muito brancos e dois olhos claros, que homem bonito.

Tio Ernesto era casado com a tia Lulu, filha do Ramos de Azevedo. Depois de viúva, continuou morando na casa da avenida Paulista, aonde vovó e eu a vistamos várias vezes. Tia Lulu tinha uma coleção de bonecas de bisqüi maravilhosa. Algumas ela deixava na sala de estar, encima do piano de armário. Diziam que tia Lulu, sem coragem de ficar saindo para comprar presentes, tinha feito uma compra enorme. As coisas ficariam guardadas em um porão, em prateleiras e quando alguém se casava ou fazia aniversário, ela mandava o copeiro ao porão pegar um presente e mandava. Seriam jogos de porcelana francesa, cristal de Bacarat, talheres de prata. Na nossa fantasia, uma verdadeira caverna do Ali Babá. Quando tia Lulu morreu eu compareci ao enterro que saiu da casa da Paulista. Nunca vi tanta gente idosa junto. Todos muito elegantes. Uma verdadeira visão de tempos melhores. Foi o maior cortejo de carros vintage que eu vi em minha vida e as chapas dos carros eram todas de dois números. Com três números apenas a nossa que era 282.

Vovô Ataliba jogava bridge sempre com os mesmos amigos. Três senhores muito sisudos. Um deles usava colete e cavanhaque e era conhecido como o Washington Luis da Casa Sloper. Dia de bridge a casa ficava silenciosa com num funeral. Esses eram os únicos dias que as crianças eram pra ser vistas e não ouvidas.

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