3/23/2009

Memórias 9 - Os sons da minha infância

Eu nasci na Maternidade São Paulo na rua Frei Caneca e passei minha infância no Pacaembu. Minha família morava no Pacaembu e em Higienópolis.

Estava lembrando os sons da cidade da minha infância e o que primeiro me veio a cabeça foi uma falta de som.

São Paulo antes da chegada da industria automobilistica brasileira em 1959 não tinha muitos carros.

A casa em que eu morava ficava na esquina da rua Itápolis com a rua Itaquera, aonde não passavam muitos carros. Eu e meus amigos atravessávamos a rua sem olhar porque, quando vinha um carro, nós ouviamos de longe o barulho do motor.

O que se ouvia eram os passarinhos, alguma cigarra e os sons dos vendedores ambulantes.

Tinha a matraca do vendedor de biju, a gaitinha de pan do amolador de facas, o barulho dos cascos do cavalo do sorveteiro e a musiquinha do realejo.

Eu ouvia a matraca de longe e dava para ir correndo pedir dinheiro para comprar um pacote. Não era o biju que se vende hoje. Era mais parente da casquinha de sorvete, enrolada formando tubinhos.

A gaitinha do amolador de facas não me interessava tanto mas, mesmo assim, saia para a calçada para ver ele passar com aquele tripé com a pedra de amolar no angulo de cima. Quando tinha alguma faca lá em casa para afiar eu ficava olhando e ouvindo aquele chiado que fazia o contacto da pedra de amolar com o metal da lámina das facas.

O sorveteiro era mais silencioso. Ele vinha em uma carrocinha puxada por um cavalo. A carrocinha era branca com uns detalhes pintados de vermelho e tinha uma capota. Não me lembro do sorvete ser especialmente bom mas eu comprava assim mesmo. O difícil era dar tempo de ir pegar o dinheiro antes do sorveteiro ter passado.

Mas a folia mesmo era quando eu ouvia o som do realejo. As empregadas do bairro vinham correndo saber o seu futuro amoroso. Nós, as crianças, também comprávamos os papeizinhos com a nossa sorte que nos diziam da paixão que estava em nosso futuro (seja lá o que isso fosse).
Era uma coisa muito científica. O tocador do realejo abria a gavetinha e pedia para o periquito pegar a sorte do moço ou da moça. O papelzinho da sorte vinha com o furinho feito pelo bico do periquito.

Outro som que se ouvia era um som mais sinistro. Eram os cachorros pegos pela carrocinha do controle sanitário que ganiam e latiam, desesperados com o seu futuro. As empregadas berravam para avisar para os vizinhos trancarem os cachorros e as crianças ficavam olhando alarmadas enquanto a carrocinha passava.

E o som das vozes? O falar paulistano era italianado. O sapateiro, o jornaleiro, os feirantes, os pedreiros, o homem do realejo e alguns empregados eram todos italianos.

O padeiro, português. Os homens que trabalhavam com pedras eram galegos, portugueses ou espanhóis.

E que bons operários eram esses europeus. Tinha o oficial pedreiro, encanador ou canteiro. Depois vinham os pedreiros de colher inteira, os meia-colher e lá embaixo da pirâmide de profissionais o servente. Esses oficiais tinham orgulho do trabalho que faziam. Não tinha perigo que fizessem alguma parede torta ou algum angulo que não fosse perfeito. Não era alguma coisa que fizessem apenas para ganhar dinheiro depressa. Não, era algo que faziam com orgulho e capricho, que era para durar por muitos anos.

Além do português italianado, espanholado ou luso, ouvia-se o som calmo e macio dos mineiros. Uma fala macia e gentil.

O telefone tocava pouco e era sempre alguma coisa de importância. Não se usava o telefone para longas conversas. Era para dar recados. Interurbano só em caso de morte ou de doença muito grave, algo que não dava para esperar algumas horas. Nos outros casos urgentes se usava o telégrafo. Uma ligação entre São Paulo e Rio tinha uma espera de 12 horas e a ligação era ruim. Se berrava tanto que quase não precisava usar o telefone.

E os bondes? Principalmente a noite era um barulho enorme. Não só o som das rodas de ferro nos trilhos também de ferro. Tinha a campainha que tocavam nos pontos e nas esquinas mais movimentadas.

Na minha casa só as empregadas ouviam rádio. Sempre tinha um rádio tocando algum bolero ou samba-canção. Mas baixinho para não incomodar.

Arquivo do blog